É muito interessante observar a transformação que foi sofrendo, ao longo dos tempos, a representação do nascimento do Menino. Na mais antiga que se conhece, por volta do ano de 354, apenas se encontra o recém-nascido deitado na manjedoura e embrulhado em panos. Nossa Senhora não se encontra representada, ao contrário, curiosamente, do boi e do burro. Santo Agostinho e S. Ambrósio interpretam o boi como representação do povo judeu, submetido ao jugo da Lei, e o burro como representação dos povos pagãos carregando o pecado da idolatria. Nossa Senhora encontra-se, sim representada, nesta mesma época, com o menino ao colo, na adoração dos Magos. S. José não aparece.

O espaço onde as figuras são colocadas ou é indeterminado ou um estábulo. Na arte bizantina, cujas mais antigas representações datam do século VI, na Palestina, o espaço é uma gruta de montanha. A partir dos séculos XV e XVI, na arte ocidental, podem ser também as ruínas de um edifício ou mesmo o interior de uma catedral. Nossa Senhora apresenta-se deitada, a cabeça reclinada numa almofada, parecendo recompor-se do esforço do parto. Ao lado, vê-se o Menino, acentuando a íntima relação da mãe com o seu filho. S. José, quando é representado, descansa, a um canto, com o rosto apoiado na mão ou ajuda as parteiras a fazerem uma refeição ou a preparar a água do banho.

Na alta Idade Média, o Menino representa-se na manjedoura. A partir do século XV, começa a aparecer ora no colo de Nossa Senhora, ora deposto no chão, em cima de umas palhas ou sobre um pano, dentro de um cestinho. Sobretudo a partir dos séculos XIV e XV, Nossa Senhora, por vezes, dá-lhe o peito. Antes também do século XV, os artistas envolvem o menino em panos. Depois, começam a representá-lo despido, certamente por causa da tendência realista do Renascimento, que aprendeu a pintar e a esculpir a anatomia do corpo. É também nesta época que pode ser representado a chupar no dedo, nova manifestação de realismo e de abandono do carácter hierático anterior. Por esta altura, o corpo do menino começa a irradiar luz, iluminando a gruta, significando que é ele a verdadeira luz que ilumina a noite do mundo.

Anteriormente ao século XV, altura em que começa também a adorar o menino, S. José mantém-se a um canto, ora dando a ideia de que adormeceu, talvez cansado de procurar pousada para Nossa Senhora, ora apoiado num cajado, com ar meditativo. Pode também significar tal postura que ele é alheio ao mistério da encarnação e do nascimento, quer dizer, não é o pai biológico de Jesus Cristo. No auto de Mofina Mendes, de Gil Vicente, encontra-se um diálogo que talvez ajude a interpretar com mais precisão o significado dessa característica iconográfica tão curiosa. No auto, ouvimos S. José queixar-se de que as pessoas não prestam atenção à grandeza divina daquela hora. Pede à Senhora que não fique triste por o parto não ocorrer em condições mais dignas. Aconteceu assim “porque as gentes d’agora / são de mui perversa veia”. E querer despertar nelas o interesse pelas coisas sagradas é como semear milho nos rios.

Onde as mudanças iconográficas, porém, são mais significativas é na representação de Nossa Senhora, deitada, de pé ou de joelhos. Havia então duas concepções diferentes do parto. Uma defendia que a Virgem dera à luz com dor, como qualquer mãe. A outra defendia o contrário. Foi esta última que acabou por se impor. Durante toda a Idade Média, Nossa Senhora aparece deitada, significando a necessidade de repousar depois do esforço do parto. Tal iconografia, contudo, parecia contradizer o mistério do nascimento virginal. Por isso, a partir do século XV, nunca mais Nossa Senhora aparece deitada. Aparece de pé ou de joelhos, adorando.

Foram, sobretudo, as Revelações da famosa mística Santa Brígida que influenciaram as mudanças iconográficas neste pormenor. No capítulo 21 do livro VII, conta que Nossa Senhora, chegando a hora do parto, se descalçou, como fizera Moisés perante a sarça ardente, soergueu o manto branco, retirou o lenço da cabeça, deixou cair os cabelos dourados sobre os ombros e colocou junto de si os panos que haviam de envolver o filho. Depois ajoelhou e começou a rezar. Enquanto orava, o Menino nasceu, subitamente, envolto em luz resplendente. Então, inclinando a cabeça, com as mãos postas, adorou o Salvador, dizendo: “Sê bem-vindo, meu Deus, meu Senhor e meu filho”.

Para terminar, só uma breve referência aos presépios de Machado de Castro, tão característicos pela abundância extraordinária de personagens que neles se incluem, representando as mais diversas profissões e actividades. Cremos que revelam uma profundíssima verdade: a de que todo o trabalho humano, na sua enormíssima variedade, só adquire completo sentido quando orientado para Jesus Cristo. É para Ele que tudo o que somos e fazemos se orienta. E supomos que na mesma linha se devem interpretar os presépios populares, articulados ou não, que podemos observar aqui na região do Minho. Revelam a profunda intuição de que o trabalho humano colabora, misteriosamente, com Jesus Cristo no seu projecto de um novo céu e de uma nova terra, iniciado com a sua incarnação e nascimento.

Luís da Silva Pereira