Aproxima-se o encerramento do I Centenário das Aparições da Virgem Maria em Fátima. Um Centenário que inspirou, mobilizou e comoveu as dioceses e o país. Um Centenário que motivou a reflexão, o debate e (abundante!) produção escrita, artística, visual e virtual. Um Centenário coroado pela canonização de Francisco e Jacinta Marto na feliz visita do Papa Francisco à Cova da Iria.

É desde este último ponto de vista que gostaria de meditar tudo o que nos foi dado viver neste ano de graça. Agora que tudo volta à normalidade, passemos do coração à razão o que vivemos para que, pouco a pouco, tenhamos razões para um novo coração e uma nova ação. Façamo-lo com os pastorinhos. As suas vidas, agora reconhecidas e apresentadas a toda a Igreja como modelo de santidade, são como que o selo de qualidade da mensagem de Fátima. No entanto, esta é a minha meditação. Assumo a parcialidade da perspetiva. Não procuro o que outros, mais doutos, poderão fazer com propriedade. Apenas quero partilhar as principais interpelações que estas vidas me suscitam para a minha vida como jovem carmelita.

 1 – A infância espiritual

A primeira grande interpelação é a própria realidade dos escolhidos. A santidade de Francisco e Jacinta coloca de novo a questão da eleição da infância e dos simples para a vida espiritual. Nos inícios do século XX, século em que o engenho humano parece escalar o inatingível e a força despoletada pelos poderosos mostra, pela primeira vez a nível mundial, a monstruosidade de que é capaz o ser humano, a Trindade volta a surpreender-nos elegendo crianças analfabetas e de um meio pequeno para que, ao fazerem uma profunda experiência da Sua graça, vivam unidas a Si e sejam profetas na cena mundial, abrindo uma janela de futuro.  A infância e a simplicidade dos pastorinhos não foram um empecilho para a vivência da santidade na sua dimensão pessoal (“Quereis oferecer-vos a Deus?”) nem empobreceu a comunicação da mensagem. Pelo contrário, na sua tenra vida, manifesta-se claramente que a união com Deus, a santidade, não é fruto dos nossos méritos nem conquista do nosso engenho, mas algo que só pode vir de Deus; apesar (e talvez por causa!) da sua condição analfabeta e da sua origem numa terra esquecida, a mensagem de Fátima chegou a todo o mundo e de todo o mundo chegam a Fátima peregrinos que, na Cova da Iria, experimentam a própria Trindade e uma bela metáfora da Igreja, mar de luz de todos e para todos os povos, experiência poderosa de uma nova humanidade reconciliada.

O fundamento bíblico desta eleição da infância, embora bastante conhecido, é sempre belo e desafiante: “Apresentaram-lhe uns pequeninos para que Ele os tocasse; mas os discípulos repreenderam os que os haviam trazido. Vendo isto, Jesus indignou-se e disse-lhes: «Deixai vir a mim os pequeninos e não os afasteis, porque o Reino de Deus pertence aos que são como eles. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele.» Depois, tomou-os nos braços e abençoou-os, impondo-lhes as mãos.” (Mc 10, 13-16) No seu contexto, o texto é claramente eclesiológico: Jesus coloca as relações dos seus irmãos na lógica do seu mistério pascal. Nesse caminho novo de sentido, os pequeninos, ontem como hoje tantas vezes excluídos, não só são incluídos, mas propostos como modelo (são como eles). É Jesus o primeiro a propor a infância espiritual, caminho que brilhará no testemunho vital de Teresinha do Menino Jesus. Conrad de Meester, estudioso desta Doutora da Igreja, define eloquentemente este caminho: “Caminho de infância espiritual é, sob o ponto de vista estático, um caminho para a santidade que consiste em reconhecer com humildade a própria situação de imperfeição e ter confiança na misericórdia de Deus, que nos concederá a graça do seu amor. Sob o ponto de vista dinâmico, o caminho da infância espiritual é progredir incessantemente nessa atitude: ‘empequenecer-ser mais e mais’.”

Claro está que na Mensagem de Fátima a infância espiritual não está presente. No entanto, a experiência espiritual na infância é a circunstância vital dos seus primeiros recetores, pois a graça não anula a humanidade. E no seu núcleo (a experiência da Graça e da Misericórdia), esta mensagem exigirá uma atitude de infância espiritual, ou seja, um caminhar como criança que confia totalmente ao cuidado de outro, deixando Deus ser cada vez mais o protagonista. A nós fica-nos o desafio de caminhar como eles pelos caminhos que a Santíssima Trindade nos propuser. A clave deste cântico novo é conhecida: abandonar-se, confiar-se, deixar-se amar e cuidar. Tal atitude, longe de nos desresponsabilizar, aumenta o desejo de responder a tanto amor, pois “amor com amor se paga”. Nunca mais esquecerei aquele 13 de maio em que, pela primeira vez na história da Igreja, crianças não mártires foram canonizadas. Se foi possível neles, faça-se em mim, faça-se em nós segundo a Tua Palavra, Senhor.

 

 

2 – Uma fé de experiência feita
Os pastorinhos são parte do grupo da gente simples: culturalmente, são analfabetos e sem grandes conhecimentos, além dos da própria ruralidade; religiosamente, estão formados pela catequese do tempo e imbuídos pela religiosidade da época. Paradoxalmente, o acontecimento Fátima atinge uma dimensão global a nível eclesial, religioso e político, com uma profundidade espiritual e teológica que só recentemente está a ser melhor estudada e compreendida. Tal paradoxo só pode ser entendido se olharmos à origem do fenómeno.

Em Fátima, não está em causa apenas e só a transmissão de um aviso, como se a Virgem Maria tivesse vindo trazer um recado. Como diz D. António Marto, “Nossa Senhora proporcionou aos três videntes uma extraordinária experiência mística de êxtase que os mergulhou na luz inefável de Deus Uno e Trino. Aqui reside a força de Fátima: os pastorinhos acreditam no mistério de Deus já não só porque alguém lhes falou mas também é acreditado porque foi experimentado”.

Consideremos a empoderadora experiência de 13 de Maio: “Foi ao pronunciar estas últimas palavras (a graça de Deus, etc.) que abriu pela primeira vez as mãos, comunicando-nos uma luz tão intensa, como que reflexo que delas expedia, que penetrando-nos no peito e no mais íntimo da alma, fazendo-nos ver a nós mesmos em Deus, que era essa luz, mais claramente que nos vemos no melhor dos espelhos.” Lúcia, na mesma Quarta Memória, regista a impressão desta experiência no Francisco: “Gostei muito de ver o Anjo, mas gostei ainda mais de Nossa Senhora. Do que gostei mais foi de ver a Nosso Senhor, naquela luz que Nossa Senhora nos meteu no peito. Gosto tanto de Deus!” Na sequência da segunda aparição, o pastorinho dizia: “Esta gente fica tão contente só por a gente Ihe dizer que Nossa Senhora mandou rezar o terço e que aprendesses a ler! O que seria, se soubessem o que Ela nos mostrou em Deus, no Seu Imaculado Coração, nessa luz tão grande!” Da terceira aparição a impressão é ainda mais vibrante: “Nós estávamos a arder, naquela luz que é Deus, e não nos queimávamos. Como é Deus!!! Não se pode dizer! Isto sim, que a gente nunca pode dizer!”

Respigando estas passagens, manifesta-se uma coisa fundamental: os pastorinhos fazem uma experiência passiva e imediata de Deus através de um contacto amoroso, uma experiência simples e unitiva, uma experiência inefável e de gozo, ou seja, uma experiência mística. Sobre Deus, os pastorinhos podem dizer uma palavra não só aprendida, mas também e, sobretudo, experimentada; podem falar de Deus desde a sua experiência de Deus! Por experiência, têm claros os núcleos e a hierarquia das realidades da fé. Desta maneira, a experiência de Deus também lhes proporciona conhecimento.

No magistério dos santos carmelitas, a experiência de Deus é fundante. Santa Teresa diz que “não escreverá coisa que não tenha experimentado muito.” Além disso, confessa que “era nada o que eu entendia até que Sua Majestade por experiência mo dava a entender.” No prólogo ao Cântico Espiritual, São João da Cruz dizia à Madre Ana de Jesus: “Se é verdade que a Vossa Reverência falta o exercício da teologia escolástica com que se entendem as verdades divinas, não lhe falta, contudo, o da teologia mística, que se sabe por amor, na qual essas verdades não somente se sabem, mas, ao mesmo tempo, se saboreiam.”

É atualíssimo o apelo à experiência de Deus. Recordemos a sentença de Karl Rahner: “o cristão do futuro ou será um «místico», ou seja, uma pessoa que tenha «experimentado» algo, ou não será cristão. Porque a espiritualidade do futuro não se apoiará já numa convicção unânime, evidente e pública, nem num ambiente religioso generalizado, prévios à experiência e a decisão pessoais.” É certo que a experiência dos santos carmelitas e dos santos pastorinhos não dependeu só deles: foi um dom! No entanto, há um mínimo de experiência de Deus que todos nós podemos “fazer”. Aliás, só com esse mínimo de experiência das realidades em que dizemos acreditar somos verdadeiramente crentes. Os pastorinhos são a prova de que uma fé à prova de intempéries, capaz de transformar o mundo e mover montanhas, sincera e realizadora do ser humano só pode ser uma fé de experiência feita.

Nota: Não pretendo com esta reflexão legitimar o analfabetismo ou a falta de formação religiosa. Uma dimensão pouco explorada, e contextualmente impressionante, é o apelo à cultura: Maria, além da oração do terço, pede que os pastorinhos aprendam a ler. Parece claro que este pedido tem como horizonte a missão da difusão da experiência de Deus. Por isso, não fará parte também da Mensagem de Fátima a qualificação para o serviço a Deus e aos outros?

Fr. Renato da Cruz, ocd