Experiência de Deus e sofrimento: que relação há entre estas duas realidades? A experiência de Deus provocará a lonjura do sofrimento? O sofrimento impedirá a experiência de Deus?

Buscando um sim desesperado à primeira questão, tantos contemporâneos nossos buscam ignorantemente a espiritualidade como um antídoto do sofrimento. Marcados na carne por experiências traumáticas próprias ou de terceiros, outros dos nossos contemporâneos respondem sim à segunda pergunta e justificam assim a sua indiferença ou o seu ateísmo. A questão do sofrimento, depois do doloroso século XX, é verdadeira pedra de tropeço para a teologia. E, no entanto, a princípios desse escuro e sangrento século, um menino e uma menina de uma aldeia perdida experimentaram a Deus no sofrimento e por Deus sofreram: Francisco e Jacinta. Na sua carne, vivem a certeza de quem bem sabe a fonte que mana e corre, mesmo de noite. E, nas belas palavras dos nossos bispos portugueses: “Quando as próprias crianças ficaram doentes, encontraram na enfermidade um lugar de identificação com Cristo e, como Ele, ofereceram o seu sofrimento pelo bem dos outros. E foi o desejo do encontro definitivo com Nosso Senhor e Nossa Senhora que também os susteve, durante a agonia.

Ao deixarmo-nos interpelar pela atitude dos pastorinhos no sofrimento e na doença, podemos contemplar como realizam a dimensão sacerdotal do nosso baptismo, oferecendo a vida nas mais diversas circunstâncias. De fato, o sacerdócio tem como fim o oferecimento: aos homens, dar o divino; a Deus, dar o humano. Aquele sim do dia 13 de Maio de 1917 à pergunta da bela Senhora “Quereis oferecer-vos a Deus?”, fez-se atitude sacerdotal ao longo de toda a vida, desde das coisas mais pequenas aos grandes acontecimentos. Conta-nos a Irmã Lúcia:

Quando […] estivemos presos, o que mais custava à Jacinta era o abandono dos pais; e dizia, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces:

– Nem os teus pais nem os meus nos vieram ver. Não se importaram mais de nós!

– Não chores – disse-lhe o Francisco. – Oferecemos a Jesus, pelos pecadores.

E levantando os olhos e as mãozinhas ao Céu, fez ele o oferecimento:

– Ó meu Jesus, é por Vosso amor e pela conversão dos pecadores.

Outra história comovedora ocorre durante a doença da pequena Jacinta:

Um dia, sua mãe levou-lhe uma xícara de leite e disse-lhe que o tomasse.

– Não quero, minha mãe – respondeu, afastando com a mãozinha a xícara.

Minha tia ateimou um pouco e depois retirou-se, dizendo:

Não sei como Ihe hei-de fazer tomar alguma coisa, com tanto fastio!

Logo que ficámos sós, perguntei-lhe:

– Como desobedeces assim a tua mãe e não ofereces este sacrifício a Nosso Senhor?

Ao ouvir isto, deixou cair algumas lágrimas, que eu tive a felicidade de limpar, e disse:

– Agora não me lembrei!

E chama pela mãe, pede-lhe perdão que toma tudo quanto ela quiser. A mãe traz-lhe a xícara do leite; toma-o sem mostrar a mais leve repugnância.

Depois, diz-me:

– Se tu soubesses quanto me custou a tomar!”

Bem a propósito vem um grande pilar da espiritualidade teresiana. No último capítulo das Moradas do Castelo Interior, Santa Teresa de Jesus assegura: “O Senhor não olha tanto à grandeza das obras quanto ao amor com que se fazem”. Mais do que grandes sacrifícios, aspecto tão desvirtualmente acentuado por muitos, foi o amor, colocado nas coisas mais quotidianas, o verdadeiro coração da experiência de Deus que os pastorinhos fizeram no meio do sofrimento. É claro que o treino de separar-se do legítimo, mas não necessário, ajudou a esta disponibilidade. Mas, tal treino seria em si uma moral de escravos se não fosse exactamente isso: um treino, uma preparação, uma habituação para dar-se nos sofrimentos que a vida nos impõe. E então, qualquer patena que a vida apresente pode ser lugar do ofertório do verdadeiro pão a ser consagrado: o amor humano.

Se fica claro que a experiência de Deus não provoca a lonjura do sofrimento, igualmente claro é que o sofrimento pode ser lugar da experiência de Deus, por muito prepotente que tal afirmação possa parecer quando escrita por quem não está a sofrer. No entanto, ela é legítima quando se fundamenta na certeza de quem, no meio do sofrimento, experimentou a proximidade de Deus. Ouçamos o testemunho que nos legou a Lúcia acerca da pequena Jacinta, pouco tempo antes de ir para o hospital: “Se eu pudesse meter no coração de toda a gente o lume que tenho cá dentro no peito a queimar-me e a fazer-me gostar tanto do Coração de Jesus e do Coração de Maria”. E os nossos bispos deixam-nos o desafio: “Que modelo de vida autenticamente ao jeito de Cristo para os nossos doentes que, em idêntica experiência dolorosa, procuram partilhar «os mesmos sentimentos que havia em Cristo» (Fil 2,5), Servo sofredor!

 

Fr. Renato da Cruz, ocd