Mais do que um testemunho, ou até mesmo mais do que uma história, o que a seguir descrevo é parte da minha caminhada, aquela que fiz de livre vontade e sempre em honra do Senhor.
Tudo começou em janeiro de 2016 aquando da minha preparação para o crisma, embora ao meu lado tivesse uma pessoa dotada de grande bondade e de uma grande integridade pessoal e espiritual, nomeadamente um Frade Carmelita Descalço, a verdade é que nesta altura a palavra de Deus começou a entrar em conflito comigo e com o meu EU.
O que é ser cristão? Ir à missa é suficiente? Foram perguntas que assoberbavam o meu pensamento, talvez não de uma forma tão consciente quanto isso, mas de uma forma inconsciente. No entanto, eram estas perguntas que necessitavam de uma resposta.
A derradeira resposta surgiu precisamente por parte do Frade que me acompanhava e que em certa altura me disse:
– Sabes que há pessoas que todos os dias vêm à missa, mas a Palavra de Deus não consegue em definitivo entrar nelas.
Foram palavras sábias e dirigidas com o intuito de clarificar todas as minhas dúvidas, parei para refletir sobre elas.
Nesta altura, li uma notícia sobre África onde, entre muitos aspetos, se focava essencialmente o sofrimento daquele povo em geral e das crianças em particular. Li, refleti, fiz uma introspeção e decidi que chegara a hora de deixar de lado o meu Eu para dar lugar ao Eu de todos os que ali sofriam.
Todos os passos seguintes surgiram com grande naturalidade. Com alguns receios, decidi colaborar com a Missão de S. Roque Bela Vista em Moçambique. Esta missão teve como principal objetivo auxiliar um orfanato que acolhia 45 crianças vítimas de maus tratos, órfãos de pai e mãe.
Iniciei de imediato uma profunda pesquisa e verifiquei que o mesmo se encontrava em elevado estado de degradação física. E aqui, eu podia dar um pouco mais de mim, podia partilhar os meus conhecimentos, dado que, durante 23 anos trabalhei na construção civil.
Após uma longa conversação com o Frade responsável pela missão e cumprindo os trâmites necessários que uma missão desta dimensão comporta, levou algum tempo até conseguir chegar a Moçambique.
Ao longo do tempo de espera decidi aprofundar os meus conhecimentos nas áreas de serralharia, carpintaria e pichelaria para conseguir atuar de forma mais eficaz. Sentia que estava empenhado, sentia-me bem fisicamente e preparado mentalmente. A oração ganhou peso e expressão na minha vida, dediquei-me a ela e passei horas em frente ao sacrário, não procurava nada, apenas pretendia oferecer a Deus a minha humilde companhia.
Eis que em novembro recebo um telefonema informando que podia embarcar na missão rumo a Moçambique. E assim foi, no dia 31 de dezembro chegava finalmente ao orfanato. À minha espera estava um padre e uma irmã com sorrisos rasgados e amavelmente acolhedores. O dia da minha chegada foi marcado não só por bons momentos, mas também pela perda humana, pois uma menina do orfanato de apenas 11 anos tinha falecido. O calor era abrasador. Estávamos em pleno verão, mas, mesmo assim, juntamente com Miniosse, um funcionário do orfanato cujo trabalho era tanto que apenas o dignificava, conseguimos uns pedaços de madeira e construímos um digno caixão para aquela menina e tive a certeza que iria ter um digno funeral.
As obras iniciaram e de imediato constatei a precariedade em que viviam, nomeadamente em questões de saúde, não havia ambulâncias, o hospital mais próximo não dispunha de oxigénio; e a ser necessário uma transfusão de sangue, o que só acontecia em Maputo, podia estar contaminado com SIDA.
Entendi que acabara de entrar numa outra realidade, num outro mundo dentro do meu mundo.
Uma outra batalha a travar residia nas condições atmosféricas, o calor era abrasador, os mosquitos eram um tormento e as noites pareciam infindáveis quando as ventoinhas deixavam de funcionar por falta de eletricidade.
As obras de requalificação decorriam não como pretendia devido à falta de material, que era muito caro e de fraca qualidade, no entanto, contávamos com a preciosa ajuda de todas aquelas crianças que trabalharam com grande afinco.
Assim, conseguimos realizar grande parte do projeto, mas mesmo assim muita coisa ficou por fazer.
Vivi muito mais do que aqui descrevo, senti muito mais do que aqui escrevi, partilhei amor e recebi o dobro daquelas crianças, senti o sofrimento delas que era atenuado pelos seus sorrisos.
Enquanto estive em Moçambique recebi mais do que dei e deixei que a Palavra do Senhor entrasse em mim.
José Carlos Mota, Postulante ocd