Esta estória mete vinho, mas é também sobre a falta dele. Aliás, começa por aí.

Em toda a história da humanidade é comum dizer-se que as águas dividem os povos e o vinho une-os. De facto, em faltando o vinho falta a alegria, a comunhão, o júbilo. Mas onde há vinho há festa que ninguém gosta que ela seja aguada.

Da missa a um casamento, duma taberna a uma casa, seja palácio de rei ou cabana de pobre, se falta o vinho falta a alegria.

Este texto das estórias do Menino Jesus fala-nos de uma vinha abandonada, de cepas tortas e tristes, de uvas ralas e ágrias. Está dito: sem vinho não há alegria; isto é, pois, o que leio em mais uma página daquele velho cartapácio de que, leitor, leitora, às vezes te falo, depois de o ter encontrado num alfarrabista de Amesterdão.

Esta estória que me apronto para te revelar tem a ver com a vinha dos carmelitas, que estava situada dentro da cerca conventual, por detrás do Carmo de Malá Strana. Bem podes imaginar, leitor, leitora, como os tempos de guerra são sempre infaustos, ora para a agricultura, ora para a indústria, ora para qualquer ofício ou arte que não lide ou alimente directamente as lides bélicas.

Bastará ler as páginas anteriores a esta estória para perceber o permanente sobressalto da cidade de Praga, sucessivamente acossada por ondas e ondas de exércitos inimigos: depois de breves momentos de sossego sobrevinham novas hordas que sobressaltavam a cidade e arrasavam tudo em volta.

Diz o provérbio que em tempo de guerra não se limpam armas e, concluo eu, também não medram os campos: ou porque os braços que os trabalham são requisitados para empunhar armas ou porque os inimigos roubam, derrubam e arrasam tudo o que encontram à sua passagem.

O que sei é que desde há séculos, o reino da Boémia era famoso pelas suas vinhas. O plantio de vastas áreas de vinha devera-se à acção empreendedora do Imperador Carlos IV da Boémia, que depois de ter frequentado a corte de seu tio Carlos IV de França, dali trouxera não só as melhores videiras como também o melhor do saber francês sobre o vinho.

A Boémia é em razão disso, desde o séc. XIV, terra de excelentes vinhos.

Não te surpreenderás, leitor, leitora, que um convento ou um mosteiro esteja rodeado de vinhas. Não te admirarás, certamente. Por toda a Europa encontrarás bons exemplos de vinhos alcançados de velhas vinhas conventuais, como também encontrarás belas cervejas e cidras.

Quem, ontem ou hoje, se admirará que frades e monges apreciem um bom vinho, uma cerveja, uma cidra ou um licor de confecção própria? Talvez ninguém. Era aqui que eu queria chegar: havia também no convento do Carmo de Praga uma vinha donde os carmelitas tiravam um excelente vinho. Não serei eu a enganar-te, leitor, leitora, nem nenhum piedoso acreditará que era só vinho de missa, que era, mas não era só o que os carmelitas tiravam daquela vinha!

Entre as artes dos carmelitas de Praga estava a de saberem fazer um belo vinho de mesa e um igualmente belo vinho de missa! Ninguém se escandalizará que eu o diga aqui… sucedeu, porém, que aqueles tempos tão ruins, aquelas constantes revoadas de soldados e a ausência dos patronos da vinha levaram-na à sua decrepitude.

Quem alguma vez fabricou um campo ou uma pequena leirinha que seja – fabricar é verbo típico da minha terra, que é de lavradores! – sabe que o abandono vai sempre em desfavor do fruto. Um ano que não se cave nem se vire a terra ela ganha um aperto tal, que mais parece duplamente esganar as raízes. E ao mais mirrar das raízes corresponde uma surpreendente afoiteza das ervas daninhas que parece redobrarem o senhorio sobre as plantas boas; e isso foi o que se passou em Malá Strana: com os carmelitas fora da sua eira e do seu claustro, a vinha ficou abandonada, vieram as ervas e as silvas e cobriram e afogaram as cepas!

A decrepitude que há umas páginas atrás te contei ter-se assenhoreado das ruas e das casas da cidade, apoderou-se também dos seus campos e vinhas. Não insisto em contar as ruínas e chagas da cidade, como não insisto em contar o que já contei: que na igreja de Nossa Senhora da Vitória, junto do altar do Divino Menino Jesus de Praga, se erguiam constantes preces e cânticos pela prosperidade da cidade e das suas famílias. Não insistirei em contar isso. O que sim direi e insistirei, é que em tempos maus uma miga de pão é festim para as bocas famintas. Mas do vinho não falarei porque não havia, pois esse era o que primeiro roubavam os soldados e mercenários dos muitos exércitos que exauriram a cidade.

Ó Praga triste daqueles tristes tempos! A fome e o acabrunhamento assenhorearam-se de ti, ó triste!

Mas por estes dias soma-se mais uma tristeza às tantas que se haviam apoderado dos praguenses: como celebrar missa se não havia vinho na cidade?

João Costa