Somos assim: tantas são as vezes em que andamos metidos nelas, que até parece que amamos as quezílias, as guerrinhas, as despotricações, e quando não, as guerras mesmo. Não passaram ainda dez anos – apenas oito, pois estamos em 1639 – e Praga está de novo sitiada. De novo em pé de guerra!

Subi às mais altas torres das igrejas, ó gentes, e dizei o que vedes! Subi, sentinelas, à mais alta torre do castelo de Praga, avistai e dizei-nos o que perscrutais! Vemos um enorme exército preparando o cerco à cidade, devolvem elas. Os soldados estão despertos e preparados e as armas afiadas e prontas. Há fogueiras ardendo e fumo subindo como num holocausto sagrado. Assam-se touros e carneiros rapinados e acarream-se pipas de vinho para encher os estômagos de soldados e mercenários!

E quanto mais alto sobe o fumo, mais alto dobram os sinos nas igrejas: em breve, pressagia-se, arderão as casas e igrejas, os palácios e monumentos! E quando à noite mais rebrilham as fogueiras vermelhas, mais se antecipa o duro inferno que em breve promete cair sobre Praga! A notícia, porém, a ninguém surpreende: toda Boémia é desde há anos um despojo apetecível. E a capital mais ainda. Há vários anos que os insolentes exércitos suecos acometem o país para o saquear. São incursões rápidas. Rouba-se aqui, chacina-se ali, tortura-se além. Ninguém vive em paz, ninguém dorme descansado. Todos se perguntam: – Como nos salvaremos? Como ocultaremos o nosso pecúnio? Onde guardaremos as colheitas? Onde esconderemos os nossos animais?

E ainda não fora encontrada solução e já nova caterva lhes assalta as fazendas, retirando-se com a pilhagem no alforge! E o que por ora não lhes é possível roubar, matam! E os cadáveres de velhos, mulheres e crianças e animais juncam os campos e caminhos, dentro e fora das cidades; a morte infame só ainda não atravessara as muralhas de Praga. Mas ninguém ali ignora o seu fim, como, aliás, ninguém alcança ignorar os sons dos tambores anunciando o embate final!

É o desalento absoluto. Dentro reina a desolação, o pranto e o desconsolo. Já ninguém ignora que será uma questão de tempo ver soldados bêbados correndo pelas ruas, arrombando portas, semeando a morte.

De novo as igrejas se enchem de gentes, homens, mulheres e crianças, e bebés de peito; todos, todos se ajoelham rezando e implorando. Todos, todos erguem as mãos para o alto, imprecando pela salvação das suas famílias e bens. Rezam as crónicas que o Prior do Carmo mandou que jamais as portas da Igreja de Nossa Senhora da Vitória se fechassem, para que noite e dia ali entrem as gentes desamparadas. E ordenou que a toda a hora pelo menos um zeloso frade Carmelita rezasse com o povo ao Milagroso Menino Jesus de Praga, rogando-lhe que se evitasse o perecer da cidade. Nas últimas horas, a vida decorre assim: dentro da cidade reza-se, fora de muros pragueja-se. Os de dentro imploram, os de fora cevam-se e deleitam-se. Ninguém ignora ninguém. Os de dentro vêem fogueiras e ouvem os preparos, os de foram aumentam as ameaças e as graçolas. Os de dentro antecipam as bojardas contra as muralhas, os de fora já as escutam a ruir. E choram as noivas, e choram as mães, porque antevêem a desgraça e a morte, que os de fora são a morte acampada às portas da cidade!

Mas, ó surpresa, numa bela manhã já não mais se avista soldado inimigo algum! Já não há ferros a tinir, forjadores a trabalhar, cuteleiros em contra-relógio, tambores a troar, risos a rir! Não havia nada? Não, já não havia inimigos à volta! 

– Subi de novo, ó gentes, às torres das igrejas, vede e dizei! Alcandorai-vos, vigias, na mais alta torre do castelo, contemplai, vede, e dizei.

– Vemos um exército retirando-se cabisbaixo e pesadumbrado, como quem não ignora a derrota! E vemos reféns correndo de volta para suas casas!

– Abri-lhes as portas e deixai-os falar. Cantemos e dancemos, porque Deus esteve do nosso lado! Correi, abri-lhes os braços; deixai-os falar.

Abriram-se as portas da cidade e eles falaram: Na noite de 30 de Agosto, véspera do assalto final, o terrível General Banér, comandante do exército sueco, recebeu um arauto com notícias que o obrigaram a retirar-se durante aquela noite! E assim foi!

E eu te digo, leitor, leitora: então, de novo, os praguenses se ajoelharam aos pés do Divino Menino Jesus de Praga para lhe agradecer a salvação! Cada joelho dobrado diante da pequenina imagem está convencido de que o Menino Jesus, e só Ele, havia alcançado o que já ninguém esperava: a libertação de Praga!

Frei João Costa, ocd