Tenho aproveitado estes fins-de-semana de Setembro, quando os dias já começam a refrescar, para visitar mais alguns dos monumentos integrados na Rota do Românico. Os últimos que fui ver encontram-se perto de Amarante: Travanca, Salvador de Real, S. Martinho de Mancelos, Salvador de Freixo de Baixo, Santo André de Telões. Já na outra semana, contudo, tinha visitado Meinedo, donde segui para Bustelo que, não sendo românico, constitui monumento beneditino muito digno de visita.

Encontrar-me face a face com estas velhíssimas construções graníticas que há séculos enfrentam intempéries que até as pedras desgastam é muito comovente. E é comovente porque, perante estes monumentos, como que recuo no tempo e vem-me logo à lembrança o esforço gigantesco de tantos e tantos homens que ergueram estes edifícios para neles se reunirem em oração, para confirmarem na fé os povos que a acção de tantos apóstolos foi abrindo à luz de Jesus Cristo. Estes monumentos são testemunhos de uma fé, são marcos de uma civilização e de uma cultura que foram civilizando sociedades que vinham da barbárie e as tornaram, gradualmente, mais humanas. O que estas pedras já viram! Os homens e as mulheres que junto delas passaram, com as suas alegrias e tristezas, a sua juventude e a sua velhice, as suas vidas de trabalho e as suas mortes! Os sacerdotes e monges que nelas celebraram o sacrifício divino, instruíram as pessoas na fé e as baptizaram! As épocas de abundância e de fome, os campos lavrados, as sementeiras, as colheitas, as chuvas e as neves, os calores ardentes do estio e as suavidades da primavera! Os tempos de paz e os tempos de guerra. Estas pedras acompanharam gerações e gerações de homens e seguiram os seus passos com os olhos bem abertos das torres sineiras que lhes marcavam os ritmos do trabalho e do descanso.

Depois, há o aspecto artístico. Estas construções são preciosas obras de arte que revelam não apenas o domínio técnico de uma pedra dificílima de trabalhar, mas o domínio de uma simbólica que toda a gente conhecia e nós, hoje, quase completamente ignoramos. Nós já não sabemos ler aquelas pedras esculpidas. São para nós um mistério, umas vezes porque o tempo as desgastou e se tornou impossível identificá-las; outras vezes, porque, embora identificáveis, já perdemos o seu significado. E, no entanto, ele era, ao tempo em que foram esculpidas, conhecido por toda a Europa. E a prova é que as esculturas dos capitéis ou das arquivoltas são, fundamentalmente, as mesmas em Travanca e numa igreja românica francesa ou espanhola. As igrejas com as suas esculturas eram uma linguagem que toda agente conhecia. Eram os seus livros. No tempo em que foram construídas, raras pessoas sabiam ler e escrever, e o livro ainda não fora inventado. A instrução das pessoas era feita oralmente. As mais velhas iam comunicando às mais novas a sua experiência de vida. Os padres, nas homilias e sermões, ensinavam a palavra de Deus e como as pessoas deviam aplicá-la na sua vida. E as imagens que se encontravam nos capitéis das colunas e nas fachadas, nos altares ou nas pinturas a fresco das paredes encarregavam-se de ilustrar esses ensinamentos.

O simbolismo destas obras manifesta-se, desde logo, na disposição das construções. Todas as igrejas estão orientadas no sentido nascente-poente: a cabeceira virada para onde nasce o sol, símbolo de Jesus Cristo; o pórtico de entrada para onde o sol se põe. Depois, as esculturas da vida de Cristo, da Virgem, dos apóstolos, principalmente nas igrejas de maior dimensão. As pessoas olhavam o tímpano dos pórticos ou das portas laterais, viam lá esculpido um cordeiro, segurando entre as patas um pendão, e sabiam que significava Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus, triunfante sobre a morte. Reparavam nos capitéis das colunas e nas arquivoltas e viam figuras esculpidas, acabadas de sair do cinzel dos pedreiros, nítidas, ainda não desgastados pelos séculos nem envolvidas pelo musgo do tempo. Viam uma sereia segurando com as mãos a cauda e sabiam que isso queria dizer que devemos controlar os nossos passos nos caminhos da vida. A vida era para eles uma viagem por este mundo e, portanto, devemos controlar a nossa caminhada para não seguirmos caminhos de perdição. E viam outra sereia com um peixe na mão, como em Travanca, e sabiam que os peixes simbolizam, neste contexto, os nossos pensamentos mais íntimos, que devemos também saber controlar. E se viam um homem segurando os pés, ou uma ave segurando as asas, sabiam que isso era ainda um aviso para que os nossos passos seguissem pelo recto caminho. E se vissem pássaros com o bico encostado ao ouvido de um homem, compreendiam que era uma advertência para estarmos atentos às palavras que vêm do alto. E se vissem dois pássaros a meter o bico numa taça ou noutra vasilha sabiam que nos aconselhavam a irmos beber as águas vivas no sacramento da Eucaristia.

Enfim, os templos eram, então, o único livro que as pessoas tinham ao seu alcance, onde podiam ler e aprender tudo o que era necessário para a sua salvação. Nós, hoje, já não os sabemos interpretar, mas talvez esta Rota do Românico, tão rica de simbolismo e tão emocionante, nos venha despertar a curiosidade e nos leve a procurar saber decifrar todos os enigmas que para nós encerram.

Luís da Silva Pereira