Ainda te lembras do gelo de algumas páginas mais antigas, leitor, leitora?  Já por aqui aludi algures à desdita que por aqueles anos caiu sobre o palácio dos Kolovrat, na bela cidade de Praga. Passados séculos, a estória ainda hoje nos espanta: sem quê nem mais quê, a bela Alzebeta, esposa de sonho do conde Kolovrat-Libstein, deixou de ver e ouvir. Isto foi tão certo como gélido ser o seu despeito pelos demais.

Habituados somos a considerar os ricos bafejados pela sorte que os faz medrar. Mas o que talvez preferimos desconhecer é que espinhos todas as rosas têm, mesmo as que se revestem de seda e pérolas. No palácio do conde Kolovrat-Libstejn há muito se haviam secado as rosas; agora medravam espinhos do tamanho de adagas e punhais!

Estás, leitor, leitora, em suspenso, com os negros pensamentos do pobre conde? Considera, pois, se poderia haver alguém que pudesse suster o rio da sua dor? Por ora nada entrevê.

Sucede, porém, que em uma das páginas sagradas da nossa fé se escreve o seguinte: «Pedi e dar-se-vos-á», «buscai e achareis», «batei e abrir-se-vos-á»! Ora, o bom do conde, pesaroso e perdido nas suas desesperadas meditações, acabou concluindo que sempre aparece alguém para ajudar, pois existe sempre alguém pronto a ajudar. Tem, enfim, concluía ele, de existir Alguém que continuamente nos acompanhe, mormente nas nossas desditas. Vai daí, eis o que lhe ocorreu: enviar prontamente um criado à Igreja de Nossa Senhora da Vitória, pedindo aos bons Padres Carmelitas que trouxessem a pequenina imagem do Menino Jesus a seu palácio.

E se assim concluiu, mais rápido despachou o criado.

Este foi num pé e veio noutro. E o miraculoso Menino Jesus abandonou a sua morada, levado por Frei Cirilo e os demais frades Carmelitas. E eis que, daí a uns momentos, uma pequena procissão de capas brancas entra no palácio do conde Kolovrat-Libstejn. E não te estranhes, leitor, leitora, que assim seja, que aqueles tempos eram outros. E não é que houvesse mais fé, mas lá que havia um acréscimo de ternura e respeito pelo sofrimento dos demais, isso nada me custa a crê-lo. Nem me custa testemunhar que a ternura e a bondade de Deus para com os seus filhos e filhas precisa de sinais sensíveis, da força delicada do toque, e amiúde do consolo do olhar – coisa que tu sabes, aqui nesta estória não poder haver, ao menos da parte da bela condessa Alzebeta, prostrada por grave humilhação.

Ainda não é meio-dia, e entram, pois, os frades Carmelitas no castelo de Kolovrat-Libstejn e logo são delicadamente conduzidos à mais sumptuosíssima câmara que sesu olhos algumas vezes viram ou verão. Então, apoiada por uma jovem serva, a condessa Alzebeta ergue-se do leito de prostração. Atenção, a câmara condal não é bem, pode dizer-se, um leito, mas uma enxerga. Recomecemos, pois: introduzidos e aproximados que foram os Carmelitas com a imagenzinha do Menino Jesus àquela enxerga condal, ergue-se a condessa, e passinho a passinho, lá vai ela tacteando, amparada pela serva quase menina. Nos seus nobres olhos, como na sua alma, tudo é escuro. Caminhava, pois, a condessa pelo escuro rumo à Luz, quando caiu de joelhos! Que lhe deu, que lhe daria? Que lhe haveria de dar? Não sabemos. Sabemos que Frei Cirilo tem diante dela a imagenzinha do Menino Jesus de Praga, e de joelhos, a condessa estende de novo as mãos no vazio, dirigindo-as para o seu Rei!

(Cena de fazer chorar até a pedra mais dura!)

Perante a cena, os Carmelitas silenciam as ladainhas; o conde, esconde o rosto desfeito em dois córregos de água. E a condessa de braços erguidos no vazio escuro, balbucia algo que nem a serva entende. Foi aquele um silêncio pesado, prolongado, solene, como se pela primeira vez a criatura ficasse perante o seu Criador.

Eis que a condessa reza.

Por fim, Frei Cirilo estendendo os braços, colocou-lhe o Menino Jesus nos braços estendidos da condessa… Esta, tomando-o, delicadamente, abraçou-o como só se abraça a Deus; apertando-o contra o seu coração, e oh!…

Ó maravilha, ó maravilha!

Nesse instante a Senhora Alzebeta deu um pungente grito! Nesse mesmo instante, conta ela, tudo à sua volta ganhou luz e cor, movimento e agitação: um pouco ao lado, via ela o marido, mais parecido a um cadáver; à sua frente, a procissão dos Carmelitas; um pouco além, os belos reposteiros, e tudo, tudo, tudo o demais…

Ó maravilha das maravilhas, o sol da manhã bailava-lhe, enfim, nos olhos! E o que não é menos, já podia ouvir o soluçante marido, que ainda nada percebera do milagre que estava sucedendo a sua mulher!

Frei João Costa, ocd