Não queria, mas tem de ser. Voltemos a falar de guerra. E de paz. Sobretudo, de guerra. Segue mais um conto, que não é daqueles em que se aumenta mais um ponto para alindar factos, mas um dos que nos recreios, pelos séculos fora, vêm sendo contados pelos carmelitas de Praga.
Tal como a mais pequenina luz mais rebrilha quanto mais profundo é o breu da noite que a cobre, assim também o amparo e a misericórdia do Divino Reizinho, que nunca se ouviu dizer desamparasse quem, confiadamente, a Ele acode e Nele se refugia. O que, pois, vou contar-te, leitor, leitora, é mais uma das estórias do velho cartapácio, que um dia encontrei na cave de um alfarrabista judeu de Amesterdão. Fala esta folha de desgraças, fome, cozinha e cozinhados. E milagres.
Não te sei dizer se na história da humanidade esta bola que é o mundo teve, alguma vez, um inteiro dia de paz. Não sei… Não te sei dizer se alguma vez existiu um dia em que os ponteiros do relógio circum-navegaram passo a passo as diferentes horas da jornada, e testemunharam um inteiro reinado da paz entre todas as raças, entre todas as nações e todas as línguas, entre todos os inimigos; um dia sem malquereres nem agressões a uma plantinha que seja, talvez seja auspício que esteja por vir. Quem, porém, o dera, meu Deus!
Conta, pois, aquele meu velho cartapácio, que a Guerra dos Trinta Anos foi contenda tão duradoira, que houve gente a nascer e a morrer dentro dela, sem nunca ter conhecido a paz. Como negras hão-de ser as vidas cujo coração não se afeiçoou a outros instrumentos que não os da guerra! E se na Praga daqueles anos, num dia as armas pesavam mais sobre um lado, no seguinte pendiam sobre o contrário. Mas quem mais sofria a bom sofrer eram os praguenses, fosse qual fosse a pandilha que se assenhoreasse do velho castelo e imperasse sobre a cidade. Se neste dia, uns; além, tinham por certo, seriam outros. E uns ou outros, fosse em que dia ou semana de meses fosse, todos se ocupavam em saqueá-la e em devastá-la; em chupá-la até ao tutano. Imaginarás, por certo, que viesse quem viesse, independentemente da cor do cabelo e da forma do rosto, a verdade era uma: vinha com fome de pão e carne, e sede de vinho e sangue!
Que Deus nos livre da fome, da peste e da guerra, não deve ser provérbio só nosso, porquanto um exército com fome não tem lei, que primeiro está quem primeiro brande a espada, razão pela qual as povoações e os campos, as riquezas e os armazéns sempre são o primeiro encalço das trupelgas famintas.
Entrando, desvairando e faminto, um bando nalguma cidade, logo mata e come. Que ninguém repara se ali se rouba um porco, ou se acolá se tira ao pão da boca de meninos!
No bairro de Malá Strana, porém, o convento do Carmo que resguarda a Igreja da Senhora da Vitória, escapou mais uma vez ileso a ignomínias, mortes e pilhagens. Como sabes, leitor, leitora, é aqui que mora o Menino Jesus, dito Reizinho de Praga. E é aqui que mais uma vez brotará uma fonte de bênçãos para a cidade, porque, mais uma vez, o Reizinho não desamparará os que Nele confiam, e mostrará compaixão pelos que O veneram. É, pois, para o Carmo que mais uma vez se voltam os corações dos praguenses.
Sucedeu, pois, que, como sempre, uma horda terrível afrontou a cidade, sem a nada se poupar e nada poupando. Cada soldado recebera, porém, uma ordem do seu general: ninguém tocaria, num fio que fosse, do hábito dos carmelitas. E mais decidiu o comandante dos exércitos inimigos — que alguma coisa haveria de ter com o Divino Reizinho — ninguém tocaria nem no hábito nem nos frades, destacando, ao mesmo tempo, entre os seus melhores soldados, uma guarda permanente para a igreja e para o convento!
E se assim foi mandado, assim se fez e se respeitaram as ordens, revezando-se a guarda a cada quatro horas.
Vendo os carmelitas de Santa Teresa e São João da Cruz a serenidade da coisa, vendo a sua casa respeitada e defendida, logo trataram de tirar proveito daquele privilégio em função das gentes de Praga. Mandou, por isso, o Prior que se abrissem as portas do convento; que entrassem ali todos os que coubessem com suas famílias e seus haveres.
E foi assim que os claustros, a igreja e a sacristia, e outras dependências do Carmo de Malá Straná se tornaram o refúgio de muitos praguenses e um recanto de paz, salvando-se, assim, muitas vidas dos maus fígados e das mãos assassinas e do instinto rapace das tropas inimigas. E com guarda fiel e zelosa à porta!
Mas podes estar ciente, leitor, leitora, que nem tudo por ora ficou resolvido, porque se é certo que o Carmo virou refúgio de muitos, que muitos foram os que se aconchegaram sob o manto do Menino Jesus, também é verdade que, ou a coisa corre bem, ou dentro de bem pouco se dá uma explosão. Afinal, como se haverá de dar de comer a tanta gente? E por quanto tempo vai ser necessário dar-lhes de comer?
João Costa