Queridos leitores e leitoras: passaram meses a mais sem nos vermos; melhor dito, sem nos ouvirmos. Sim, eu sei que estas estórias que encontrei num velho alfarrábio escrito em latim e por mim publicadas desde há longos meses, são muito apreciadas e comentadas. Depois da ausência é, pois, hora de voltarmos ao nosso convívio.
Quando uma família se reúne à volta da mesa ou da fogueira aproveita para recontar a história familiar; e contando esta e aquela revivem as gestas do passado e relançam os fundamentos do futuro. É o que aqui procuro fazer. E se não podemos juntar-nos todos à volta da mesa, recebei, ao menos, estas letras como se fora uma carta dirigida ao coração de cada de uma e cada uma vós. Escrevo-as também eu com o coração.
Esta estória que agora começarei chama-se visitas de anjos e já se vê do que vai falar. O que, porém, aqui, direi não tem data, pois não a encontrei no velho alfarrábio de que me alimento. É simplesmente uma história de luz que rebrilha no breu da noite. Como sabeis, meus queridos leitores e leitoras, há luz e luz, e uma só brilha mais que a luz do meio dia. E se essa mais brilha é porque, junto dela, a maior luz do dia, se parece à da noite!
Como percebereis algumas destas estórias podem ter ocorrido quase em simultâneo ou mesmo em simultâneo, a outras que atrás contei – afinal, parecem-se tanto… Por isso, o que parecer simultaneidade deve ser assumido que o seja mesmo. Voltarei, pois, a falar dum tempo de morte, de escuridão, de negrume e sofrimento.
Sabeis bem que houve na Europa uma era que se chamou o século das luzes. Estranho nome, porém. Digo estranho porque, como acima dizia, há luzes e luzes, e mesmo quando certas se impõem, continuam sendo noite se comparadas com a mais bela!
Não me estranharia que este relato que vou contar-vos se tivesse passado no tal século das luzes. O lugar é o de sempre: Praga. Mas bem podia ser outro; um pouco atrás ou um pouco além. Foi em Praga e à volta de. Reza o catarpácio que, ágil, a morte irrompia de negra gadanha às costas, cavalgando seu negro cavalo. E que nenhum recanto da Boémia deixou de visitar diligentemente, ceifando vidas sem fim e prostrando por terra tantos corpos como de gabelas se compõem os campos de trigo ceifados!
Ó espantoso trabalho da inimiga morte! Ó terror!
Por todos os lados de todos os lugares os filhos choravam as mães e pais mortos e, o que é mais, como se não fora suficiente tanta dor, as mães, apertavam contra o peito tantos filhos infantes mortos!
Também no Carmo do Menino Jesus, os frades caíam um, primeiro, depois, outro. E por fim caíram todos menos um, o prior. Sim, também os homens santos que socorriam os caídos da cidade passaram a ser socorridos em seu leito pelo solícito prior. Primeiro caíam de cama e, depois de longa prostração, morriam. E agora sim, já nem os Padres Carmelitas honravam com a sua visita o Divino Menino Jesus! Até a missa da meia noite que sempre Lhe ofereciam deixou de ser rezada e, pela noite fora, já vivalma ficava de vela ao Seu altar! Triste sina: jaziam os frades em seus pobres catres e, só, o Menino Jesus, em seu altar. Pareciam zangados, parecia o fim! Só mesmo um restava são, intocado pela peste: o prior. Bendito homem de Deus a quem a doença poupara ou a morte se esquecera de levar, permitindo que se dedicasse a seus irmãos, cuidando-os, levando-lhes os remédios e um caldo à cama, visitando-os e tratando-os como um pai! Bendito homem de Deus! Pena que o meu catarpácio não lembre o seu nome…
E não apenas cuidava dos seus – o que era normal que assim fosse – pois sem descanso corria pela cidade, ajoelhando-se junto ao leito dos moribundos, assistindo quantos podia, levando-lhes uma palavra de consolo e os últimos sacramentos! Bendito homem de Deus e santo homem que se privou do seu descanso para socorrer a quantos pôde, consolando pais e mães, cuidando dos infantes! Bendito e santo homem que não apenas de dia, mas também de noite, saía pelas ruas da cidade para visitar os apestados!
Que homem! Que santo!
Perguntar-me-ás, leitor, leitora, como é de lei, quando descansava e dormia o pobre prior do Carmo? A verdade é que não li que dormisse. Mas deve ser exagero, pois todo o guerreiro reclama descanso da luta e o trabalhador de seu trabalho. Sim, a caridade também cansa e mais cansa um homem só, mesmo que santo. Por isso não sei dizer-te que dormisse, mas parece-me óbvio que dormia. É certo que a caridade nos impele mais e mais, e até aceito que Deus poupe um e que este não se canse de socorrer os demais. Mas que descansasse, parece-me que tinha de ser. Ou finar-se-ia ele também e, quem sabe, até mais cedo que os demais. Descansou, portanto. Até que uma noite, ao regressar a casa…

João Costa, ocd