Nasci nos montes e gosto das “montanhas, dos vales solitários nemorosos, das ínsulas estranhas, dos rios rumorosos, do sibilo dos ventos amorosos”, porque, no dizer de São João da Cruz, o Amado “com sua só figura, vestidos os deixou de formosura” (CB 5). Na verdade, “Deus, ao abrir a sua mão, enche de bens todos os seres vivos” (Sl 144, 16). A natureza fala-nos de Deus e São Francisco propõe-nos “reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade” (LS, 12). Daí, a dor de alma e na alma que me causaram os fogos deste verão. A beleza e a bondade divinas ficaram reduzidas a cinzas, deixando no pranto e na dor homens, mulheres, animais, plantas… Daí o grito: “Senhor de nós/ e dos espaços verdes e belos que habitamos,/ da beleza dos montes/ dos rios e das fontes,/ Senhor do tempo/ e do amor dos corações,/ por que permites que o verde/ se transforme em poeira/ e em veneno o amor,/ que tudo fique tão feio e desfigurado,/ queimado,/ que nem os pássaros encontram poiso e alimento/nem pasto os animais,/ nem os homens alento?” (D. António Couto, bispo de Lamego).

Ao dar um “passeio” pelos montes queimados, ou melhor, ao vaguear desnorteado em oração por tantos quilómetros queimados, e ao contemplar nas mãos as cinzas da beleza e bondade de Deus, pareceu-me ouvir o “Senhor de nós e dos espaços verdes” a perguntar, chorando: “Povo meu? Que te fiz eu? Que mal te causei? Não me dirás?” (Miq 6.3). Na realidade, é o homem que “produz anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, electrónicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioactivos. A Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo” (LS, 21).

Numa paisagem desoladora, sentado nas cinzas, alvejei a uns metros de mim uns rebentos novos, viçosos e belos, que brotavam do seio da terra. Por entre as cinzas renasciam a beleza e a bondade de Deus que ninguém consegue queimar, porque “o Seu amor é para sempre” (Sl 136). Senti-me terra na Terra; vi-me como lixo, fogo e cinzas, pecado e feiura; mas também, naqueles rebentos novos, viçosos e belos, apercebi-me de que “o Senhor de nós e dos espaços verdes” fazia rebentar em mim a sua beleza e bondade. E daqueles rebentos novos parecia-me ouvir o Papa Francisco a rezar: “Deus Omnipotente, que estais presente em todo o Universo e na mais pequenina das vossas criaturas, Vós que envolveis com a vossa ternura tudo o que existe, derramai em nós a força do vosso amor para cuidarmos da vida e da beleza” (LS, 246).

No fim do dia, ao repassar o meu “passeio orante”, continuava a “ver” os rebentos novos, viçosos e belos, e renovei a minha confiança na profecia de Isaías: “O deserto e a terra árida vão alegrar-se, a estepe exultará e dará flores belas como narcisos. Vai cobrir-se de flores e transbordar de júbilo e de alegria” (Is 35, 1-2). Sim, porque “Eu, o Senhor, renovo todas as coisas” (Ap 21, 5).
Quem tem a última palavra da vida não são as cinzas nem a destruição, mas antes os “rebentos novos” da ressurreição.

Agostinho Leal, ocd