Entre os humanos é habitual ser-se desagradecido; se colhidos por mágoas e dores, auspiciamos a cura; se bafejados pelo consolo e fortuna, gozamos. Não que isto seja universal, mas que somos useiros e vezeiros na ingratidão, isso somos.
O texto anterior deu-nos a conhecer um pouco dessa ingratidão. Mas que sejamos ingratos não surpreende o nosso Deus, razão pela qual sempre nos abençoa na sua misericórdia. Mas, ah, meu Deus, perdoai-me, perdoai-me, pois houve um homem jamais ingrato ou olvidado do Divino Menino Jesus de Praga: Frei Cirilo da Mãe de Deus!
Ao regressarem os Carmelitas a Praga, Frei Cirilo era já sacerdote. De Praga saíra apenas noviço; fora, aliás, dos primeiros a venerar a pequena imagenzinha e a consagrar o seu coração ao Reizinho. Ora, um amor assim padece mas jamais perece. Por isso, logo obtendo licença para procurar a imagem desaparecida, pôs-se em busca dela, e, achando-a, prontamente a honrou com singela veneração.
Oh!, como se iluminou aquele escuro fim de dia, quando a porfia lhe devolveu a profanada imagem! Que tesouro achou! E posto em silenciosa oração diante da veneranda imagem, logo escutou como que a vozita de um menino, implorando-lhe a devolução das mãos, prometendo: «Devolvei-me as mãos e Eu Vos darei a paz. Se me adorardes Eu vos visitarei»! Frei Cirilo comocionou-se, e pouco faltou para quedar mudo!
Pelas janelas da igreja entrava agora a mansa luz da lua. Meio aturdido ainda, ergueu-se e dirigiu-se para a imagem. Contemplou as vestes desagastadas por sete anos de desprezo. Tocou por fim os bracinhos e sim, sim, à sacrossanta imagem faltavam as mãos! Como não repara logo, lamentou-se. Tão grande fora a alegria do achamento que descuidara o pormenor. E inclinando-se perante o Reizinho, logo ali tomou pronta decisão: visitar sem demora o padre Prior. Chegado à sua presença, anunciou-lhe o conteúdo da misteriosa voz, que ainda acrescentara: «Quanto mais me honrardes, mais Eu vos favorecerei!». Verdade seja dita, o Prior não quis saber de vozes nem de nozes, e deixou Frei Cirilo de coração partido e mãos a abanar. A verdade é que no convento não havia dinheiro para acender uma vela, quanto mais para restauros!
– «Pense bem, irmão, dizia o zeloso Prior, esse restauro iria custar-nos pelo menos um ducado»!
Que fosse, mas não foi; pelo que Frei Cirilo desceu à igreja e a levou dali. Não era uma visão digna de se ver, pensou, mas não desanimaria em suas orações, pois percebera bem a promessa do «Quanto mais me honrardes…».
Não muito depois, sem surpresa para si, apresentou-se alguém no Carmo com uma oferta: cem ducados! Ora cem é muito mais que um, pensou, mas nem isso comoveu o Prior ignorante dos milagres acontecidos por intervenção do gracioso Menino Jesus! Era um homem a quem Frei Cirilo acompanhara na doença, rogando ao Reizinho a cura de suas graves maleitas, e porque a obtivera apresentava-se ali, de coração agradecido. Mas nem isso nem as insistências de Frei Cirilo demoveram o Prior.
– «Enfim, dizia ele, para que serviria aquela velha imagem?»! E vai daí, com a oferta recebida mandou esculpir uma que desse gosto olhar e aumentasse a devoção. E logo que ela chegou entronizou-a no altar. Tinha esta sido colocada havia pouco quando sobre ela caiu um enorme candelabro, e a deixou em fanicos!
– «Talvez sua reverência entenda agora, meditava Frei Cirilo; talvez agora decida mandar restaurar a velha imagem»!
– «Mas não, que não mesmo! Quem estaria na disposição de olhar para uma imagem assim?», contrapunha o resoluto Prior, de coração ainda mais bravo.
Frei Cirilo calou-se. Pareceu-lhe que todos os rogos e pedidos se perderiam em vão. Oh, sim, mas uma coisa é bater à porta de um coração humano, que tantas vezes, sem razão se volve de pedra, e coisa bem diferente é suplicar ao Divino. E a Esse, o devoto frade sempre se encomendara. Sim, não havia dia, tal como sempre fizera, mesmo no desterro de sete anos em Munique, que Frei Cirilo não volvesse o olhar e preces para o Divino Reizinho, que é o Senhor dos dias, dos tempos e de todos os corações.
E orou.
Orou e orou.
Ah, mas até o bendito frade, o coração mais meigo que o Menino Jesus tinha em Praga, esmoreceu. Sim, um dia Frei Cirilo descreu e desesperançou. Não que parasse de rezar, mas deixou de crer que o Menino Jesus volveria para o seu trono. Eis senão quando chegam ordens ao convento para que o Prior abandone o cargo e deixe a cidade! Ao saber a notícia, Frei Cirilo percebendo ali o dedo de Deus, cuidou de tocar os sinos a repique, mas conteve-se a tempo. Despediu-se, isso sim, do Prior com o abraço da paz, e confiou em seu coração que em breve chegaria ajuda. É que os caminhos de Deus são directos, mesmo quando parecem perder-se por entre mil subter-refúgios!